No quarto, as quatro horas da manhã, a francesinha Michelle sonha com os instantes seguintes. Hoje será o dia decisivo de seu recital de piano, na escola de música, onde entrou há quatro anos. O tempo passa tão veloz quanto seus dedos que deslizam pelas teclas do belo instrumento que tem a sua frente, presente de um tio que achava que ela nunca seria capaz de tocá-lo. Não que Michelle fosse sem talento, muito pelo contrário. Mais nova de três irmãs que cantavam como pipiras em tempo de manga quando pequeninas, sempre teve a voz mais saliente. Mas não acreditavam que pudesse, um dia, alcançar notas além do banheiro ou de seu quarto. Tampouco queria dizer que seu tio não gostasse dela. Se não gostasse, não a teria presenteado com tamanha maravilha instrumental. O piano foi achado numa dessas lojas de usados, cujo vendedor garantiu que seria o mais forte já criado pela mão humana e que Chopin teria adiado sua morte se o tivesse tocado. Para o tio, de posses modestas, isso significava que o trambolho servia, pouco importando quem era esse tal que falara-lhe o homem. Michelle tinha dezesseis anos quando o ganhou, ouvindo seu tio dizer-lhe: “espero que aproveite-o bastante”. Ela sabia que aquela fala carregava mais do que parecia querer dizer. Que mesmo com sua felicidade e com o paparico de todos por conta desse presente, o pensamento que imperava sobre essa passagem era o de como a mocinha de fala macia, tímida e sorridente poderia tocar algo tão pomposo. Suas especulações iam além, pois poderiam estar pensando sobre como ela daria uma utilidade aquilo, que não fosse apenas brincadeira com o som das teclas. Michelle já estava acostumada com isso. Michelle é cega.
Quando ainda era uma bonequinha de fraldas e andar desengonçado, a mãe percebeu algo diferente, alguma coisa que não estava certa. Michelle demorou aprender a falar, mas sempre soube. Michelle pensa que se pudesse, naquela época teria se esforçado ao máximo para dizer aos pais que o que enxergava eram apenas vultos e que isso gradativamente piorava. Complicado demais, simples demais.
Quando Michelle aprendeu a falar, era uma menina triste. Essa, aliás, foi a primeira palavra que pronunciou: triste. Era assim que ela se sentia quando ouvia as irmãs falarem de coisas que ela não podia ver. Era assim que ela se sentia por ouvir ruídos que ela adoraria saber de onde vinham, mas não podia. Por não poder ver os tais desenhos animados com seus personagens coloridos que tanto falavam seus colegas. Michelle por vezes ficava a um canto, dedinho traçando círculos nas coxas, com o pensamento distante. Achava que não ver a impedia mesmo até de imaginar. Era como se estivesse ela em uma caixa escura e houvesse todo um mundo lá fora, cheio de imagens coloridas, vibrantes, rostos e formas fascinantes.
Era feliz quando cantava. Inventava junto com as irmãs canções de roda, musicas românticas, serenatas. Sozinha, lembrava-se dos sons que emanavam do radio e repetia os versos e ritmos que lembrava. Cantar pode não ter sido sua segunda palavra a ser aprendida, mas foi sua primeira alegria. Cantou até um dia descobrir que seu pai, também um fã de música, possuía uma coleção de discos, daqueles antigos LPs em vinil e uma vitrola. Pediu a ele que a apresentasse algumas daquelas canções, e foi quando ela parou de cantar e ouviu. Ouviu e sorriu, como nunca havia sorrido. Aquela musica a fazia assim, simplesmente sorrir. O pai dizia que aquilo que girava na vitrola chamava-se Beatles e que eles eram um grupo precursor de sua época. Faziam rock and roll e ela, Michelle, descobriu que gostava, gostava muito daquilo.
Michelle, tato apuradíssimo, aprendeu com destreza fenomenal a operar a velha vitrola sem ajuda de ninguém. Escutou tudo que havia sobre os Beatles naqueles discos. Pedia para seu pai contar-lhe sobre eles. Aprendeu rápido os nomes, Paul, John, George e Ringo. Logo sabia todas as musicas, além de ter aprendido inglês por meio delas. Gostava especialmente de uma, para ela a mais bonita. Trazia seu nome no título e a menina não se cansava de ouvir a musica dos reis do iê-iê-iê, que gentilmente se chamava Michelle. A francesinha se sentia linda sob seu som. O barulho da agulha sobre o disco antes da música, a entonação da voz de seu Beatle preferido cantando seu nome de maneira tão doce, Michelle se esqueceu que não possuía a visão. Para ela, o som declarando-se fazia com que não enxergar fosse algo insignificante. Na verdade, via de outra forma, com outros órgãos, outros sentidos. Sobretudo com a audição. De tanto amor que tinha por aquela canção, de tanto escutar os sons que lhe faziam bem, despertou o que veio a chamar de ouvido musical. Da escuta, passou a tocar. Os dedos sobre o piano faziam sentido agora. O mundo de Michelle se encheu de cores que nunca poderiam ser vistas por nenhuma outra pessoa pois elas não vinham da visão. Vinham de todas as outras vibrações que faziam o corpo de Michelle viver. Aprendeu a tocar e o fazia para todos ouvirem ao seu redor. A voz repetia as canções que lhe agradavam, repetia aquela com o seu nome. Todos aplaudiam.
São quatro e meia da manhã e Michelle toca o que irá apresentar nesse dia, em seu recital. Ensaiou exaustivamente. Nossa francesinha vai fazer com que todos ouçam seu nome. Vai cantar como canta seu Beatle preferido e se emocionará. Vai encher ao seu redor das cores que só ela vê, cores da música. Michelle é cega, mas enxerga coisas que ninguém conseguiria, nunca. E sorri.
Michelle
The Beatles
Michelle ma belle
These are words that go together well
My michelle
Michelle ma belle
Sont les mots qui vont trés bien ensemble
Trés bien ensemble
I love you, I love you, I love you
That’s all I want to say
Until I find a way
I will say the only words I know that you’ll understand
Michelle ma belle
Sont les mots qui vont trés bien ensemble
Trés bien ensemble
I need to, I need to, I need to
I need to make you see
Oh what you mean to me
Until I do I’m hoping you will know what I mean
I love you
I want you, I want you, I want you
I think you know by now
I’ll get to you somehow
Until I do I’m telling you so you’ll understand
Michelle ma belle
Sont les mots qui vont trés bien ensemble
Trés bien ensemble
And I will say the only words I know that you’ll understand
My michelle
Conde L.
3 comentários:
Simplesmente lindo(mais lindo aindas e eu comentar com vc do meu lado!rs)...
E com beatles! Pra que melhor??
Olá Luis, desculpe não ler texto de Michelle, e que nao tenho muito tempo aqui na lun, e nem sei quando é que vc vai ler isto aqui, rsrsrsrs.
Mas olha, achei no google um site que vc pode baixar nã os originais, mas novas versões dos tres discos do Ronnie Von da fase psicodélica. O endereço é:
http://musicapoesiabrasileira.blogspot.com/2007/05/baixe-aqui-os-dois-volumes-do-tributo.html
S´ouvi as músicas que estao disponibilizadas no site, as que tem que baixar nao pude escutar, mas preste atençãos nas músicas:
-Espelhos Quebrados - Rádio de Outono (a melhor e a que mais se aproxima da original lembra Penélope)
-Chega de Tudo - Os Vilsos ( com um peso ótimo, embora poderia pegar amais pesado nas guitarras)
-O Último Homem da Terra - Superlego (com uma letra de fição cientifica que vc deve gostar)
-Pra Chatear - Astronauta Pinguim (muito irreverente, é melhor que a ciranda da rosa vermelha da elba ramalho, rsrsrsr)
-Meu Bem - Os Insertos (esta dispensa comentario, e a classica!!!)
Depois que vc escutar todas me fale como é que so por estas ja gostei, rsrsrsrsr, (alias adorei)
desculpe a pressa, recomende vale a pena, o cara era bom mesmo!!!!
Ah, eu tie que por senha para postar, rsrsrsrsr
Acabei de ler o Texto. Precisa dizer que eu adorei o texto? Hoje de manhã eu havia lido a o disco (Rubber Soul, 1965) e tenho a melodia na cabeça. Vejo o texto e sinto a historia, ela não tem fim, mas ela não precisa, pois fica implicito.
O que aconteceu com o tio, como ela aprendeu a tocar o piano, o que a motivou?
Esta tudo lá, é michelle...
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